Sufismo

Ibn Arabi - O mistério da Essência Divina

 Deus é o seu espelho, isto é, o espelho em que você contempla o seu ser (nafs, anima), e você por sua vez, é o espelho Dele, isto é, o espelho em que Ele contempla Seus Nomes divinos. Aqui temos uma relação recíproca entre dois espelhos de frente um para o outro e que refletem a mesma imagem um para o outro. A imagem não está fora dele, mas dentro de seu ser, ou melhor ainda, é o seu próprio ser, a forma do nome divino que ele mesmo trouxe consigo ao tornar-se existente. E o círculo da dialética do amor fecha-se nessa experiência fundamental: "O Amor está mais perto do amante do que é a sua veia jugular". Tão excessiva é essa proximidade que ela age em princípio como um véu. É por isso que o novato inexperiente, embora dominado pela imagem pela qual ele investe todo o seu ser interior, vai procurá-lo fora de si mesmo, em uma busca desesperada de forma a forma do mundo sensível, até que retorna ao santuário de sua alma e percebe que o verdadeiro Amado está profundamente dentro de seu próprio ser e, a partir daquele momento, ele busca o Amado apenas através do Amado. O sujeito ativo dentro dele continua a ser a imagem interior de beleza irreal, um vestígio da contraparte transcendente ou celeste de seu ser.





Deus não está limitado à maneira pela qual Ele é epifanizado por você e se faz adequado para a sua dimensão (para que você possa recebê-Lo). E é por isso que as outras criaturas não têm obrigação de obedecer a Deus, que exige a sua adoração, porque suas teofanias assumem outras formas. A forma que Ele é epifanizado por você é diferente daquela que ele é epifanizado pelos outros. Deus, como tal, transcende todas as formas inteligíveis que se possa imaginar, que se possa sentir. Entretanto, quando considerado em Seus nomes e atributos, ou seja, suas teofanias, Ele é, pelo contrário, inseparável dessas formas, de determinadas configurações e de uma certa posição no espaço e no tempo.


Nada além de Deus é amado nas coisas existentes. É Ele que se manifesta dentro de cada amado aos olhos de todos os amantes - e não há nada no reino existente que não seja um amante.


Ó amante, quem quer que você seja, saiba que os véus entre você e seu amado, quem quer que ele seja, não são nada senão o seu emaranhamento com as coisas, não as coisas em si, como é dito por aquele que não provou o sabor de realidades. Você se deteve com as coisas por causa da deficiência de sua percepção, ou seja, a falta de penetração, expressa como o véu, e o véu é a não-existência e a não-existência é a nulidade. Assim, não há véu algum, se os véus fossem verdadeiros, você também deveria ter sido velado daquele que foi velado de você.


O Amado torna-se um espelho que reflete a face secreta do amante místico, enquanto o amante, purificado da opacidade de seu ego, por sua vez, torna-se um espelho dos atributos e ações do Amado.


A Caaba mística é o coração do ser. Foi dito: "O Templo que Me contém está em seu coração." O mistério da Essência Divina não é outro senão o Templo do coração e é em torno do coração que circumbulam os peregrinos espirituais.


Tudo o que nós chamamos de diferente de Deus, tudo o que chamamos de universo, está relacionado com o Ser Divino como a sombra está relacionada com a pessoa. O mundo é a sombra de Deus. A sombra é ao mesmo tempo Deus e algo diferente de Deus. Tudo o que percebemos é o Ser Divino nos protótipos eternos das possíbilidades.


Não é do nada que Sua criação brota, ou de algo diferente Dele mesmo, de um não-Ele, mas de Seu Ser fundamental, das potencialedades e virtualidades latentes em Seu próprio ser não revelado.


O Ser Total é a união deste Senhor e do Seu vassalo. As duas dimensões referem-se, na verdade, o mesmo Ser, mas para a totalidade daquele Ser, um é adicionado (ou multiplicado) ao outro, eles não podem negar um ao outro, ou ser confundidos com o outro, ou substituído pelo outro.

Meu coração pode assumir qualquer forma:
Um prado para as gazelas,
Um claustro para os monges,
Para os ídolos, solo sagrado,
Caaba para o peregrino circundar,
As plataformas da Torá,
Os pergaminhos do Alcorão.
Meu credo é Amor;
Onde quer que a caravana do amor se dirija ao longo do caminho,
Essa é a minha crença,
A minha fé.



A terra de nosso supremo lar
É uma terra de flores sem espinhos:
Não se permitem ali as atras florestas do medo
Nem se semeia jamais a Dor.

O riacho do amor corre ali sem cessar,
A criação é um deslumbramento
E visões celestiais consolam a terra
Enquanto torrentes imemoriais alegram os olhos.

Ali toda oração é auto-suficiente,
Ninguém regateia dádivas,
A vida é feita de verdade,
E desconhece a máscara da ilusão.

Proscrito está o egoísmo,
E vedados os pensamentos personalizados,
Senhor algum governa, servo algum obedece,
Sombra alguma empana a Divina Luz.

Não é um arroubo poético
Esse mundo de amor e êxtase
Que, no fundo de cada coração,
Espera apenas ser descoberto.

Poema sufi - Dilip Kumar Roy - Peregrinos das estrelas



O Renascer da Fenix
(Farid ud-Din Attar)


"Na Índia vive um pássaro que é único: a encantadora fênix tem um bico extraordinariamente longo e muito duro, perfurado com uma centena de orifícios, como uma flauta. Não tem fêmea, vive isolada e seu reinado é absoluto. Cada abertura em seu bico produz um som diferente, e cada um desses sons revela um segredo particular, sutil e profundo. Quando ela faz ouvir essas notas plangentes, os pássaros e os peixes agitam-se, as bestas mais ferozes entram em êxtase; depois todos silenciam. Foi desse canto que um sábio aprendeu a ciência da música. A fênix vive cerca de mil anos e conhece de antemão a hora de sua morte. Quando ela sente aproximar-se o momento de retirar o seu coração do mundo, e todos os indícios lhe confirmam que deve partir, constrói uma pira reunindo ao redor de sí lenha e folhas de palmeira. Em meio a essas folhas entoa tristes melodias, e cada nota lamentosa que emite é uma evidência de sua alma imaculada. Enquanto canta, a amarga dor da morte penetra seu íntimo e ela treme como uma folha. Todos os pássaros e animais são atraídos por seu canto, que soa agora como as trombetas do Último Dia; todos aproximam-se para assistir o espetáculo de sua morte, e, por seu exemplo, cada um deles determina-se a deixar o mundo para trás e resigna-se a morrer. De fato, nesse dia um grande número de animais morre com o coração ensanguentado diante da fênix, por causa da tristeza de que a veem presa. É um dia extraordinário: alguns soluçam em simpatia, outros perdem os sentidos, outros ainda morrem ao ouvir seu lamento apaixonado. Quando lhe resta apenas um sopro de vida, a fênix bate suas asas e agita suas plumas, e deste movimento produz-se um fogo que transforma seu estado. Este fogo espalha-se rapidamente para folhagens e madeira, que ardem agradavelmente. Breve, madeira e pássaro tornam-se brasas vivas, e então cinzas. Porém, quando a pira foi consumida e a última centelha se extingue, uma pequena fênix desperta do leito de cinzas."


A ave fênix sempre exerceceu grande fascínio à minha imaginação. Desde criança eu pensava nesta fabulosa ave, e em seus prodígios, tão únicos, e tão enigmáticos. Com o passar do tempo, fui compreendendo melhor os significados que me escapavam quando criança, de modo que, hoje, dentre todas as criaturas mitológicas, reais ou imaginárias, ela é a primeira de minha lista, seguida pela raposa (kitsune) e pela esfinge.

Mas o que torna, tão singular ave, um prodígio capaz de surpreender e encantar toda e qualquer pessoa que se depara com seus mitos e lendas? Seriam seus dotes físicos como voar e converter-se em chamas, ou carregar consigo, em pleno voo, pesadas cargas? Ou seria, ainda, sua absurdamente extensa longevidade? Quem sabe não seria, por fim, o dom de, ao término de sua própria morte, renascer para a vida?

"Aconteceu alguma vez a alguém deste mundo renascer depois da morte? Mesmo que te fosse concedida uma vida tão longa quanto a da fênix, terias de morrer quando a medida de tua vida fosse preenchida. A fênix permaneceu por mil anos completamente só, no lamento e na dor, sem companheira nem progenitora. Não contraiu laços com ninguém neste mundo, nenhuma criança alegrou sua idade e, ao final de sua vida, quando teve de deixar de existir, lançou suas cinzas ao vento, a fim de que saibas que ninguém pode escapar à morte, não importa que astúcia empregue. Em todo o mundo não há ninguém que não morra. Sabe, pelo milagre da fênix, que ninguém tem abrigo contra a morte. Ainda que a morte seja dura e tirânica, é preciso conviver com ela, e embora muitas provações caiam sobre nós, a morte permanece a mais dura prova que o Caminho nos exigirá".






A Fênix 
A Fênix é um pássaro admirável e lindo que vive no Hindustão. Não tem 
companheiro, vive só. Seu bico, muito comprido e liso, é todo furado, como a flauta, e tem 
quase cem furos. Cada furo produz um som, e em cada som há um segredo especial. Às 
vezes, ela cria música através dos furos, e ao ouvir as  notas que ela emite, meigas e 
plangentes, pássaros e peixes se agitam e os mais ferozes animais caem em êxtase; depois, 
todos se calam. De uma feita, um filósofo visitou o pássaro e aprendeu com ele a ciência da 
música. A Fênix vive cerca de mil anos e  sabe exatamente o dia em que vai morrer. 
Chegada a hora da  morte, reúne à sua volta grande quantidade de folhas de palmeira e, 
desvairada entre as folhas, desfere gritos merencóreos. Pelos furos do bico, emite notas 
variadas, e a música lhe sai do fundo do coração. Suas lamentações expressam a tristeza da 
morte, e ela treme qual uma folha. Ao som  da sua trombeta, os pássaros e animais se 
aproximam para assistir ao espetáculo, desnorteados, e muitos morrem por lhes faltarem as 
forças. Enquanto ainda respira,  a Fênix bate as asas e eriça as penas, e, com isso, produz 


fogo. O fogo se espalha pelas copas das palmeiras, e tanto as frondes quanto o pássaro são 
reduzidos a carvões acesos e, logo, a cinzas. Mas depois que a derradeira chama tremeluz e 
se extingue, uma nova e pequena Fênix surge das cinzas. 
Nunca sucedeu a ninguém renascer após a morte? Ainda que vivesses tanto quanto a 
Fênix, morrerias quando se enchesse a medida da tua existência. Os seus mil anos de vida 
estão cheios de lamentações, e ela permanece só, sem companheiro nem filhos, e sem 
contato com ninguém. Quando chega o fim, atira as próprias cinzas ao vento, de modo que 
se possa saber que ninguém escapa da morte, seja qual for o artifício que empregar. 
Aprende, pois, com o milagre da Fênix. A morte é um tirano, mas precisamos tê-la sempre 
em mente. E, conquanto tenhamos muito que aguentar, isso é nada comparado ao morrer.


O ultimo e mais obscuro obstáculo humano é a morte. Mas, para muito, existem coisas bem piores do que morrer. Entretanto, para quem crê que exista algo para além da morte, nem mesmo esta é tão terrível quanto aparenta ser, pois enquanto houver um "amanhã", haverá, também, um brilho de esperança.



No artigo "Fenix" da WIKIPEDIA, atribui-se ao persa Farid al-Din Attar, poeta sufista, o seguinte texto:

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